marginalia 0.2 - apropriações videográficas

Triangle - Nam June Paik*

O artista coreano Nam June Paik - com formação inicial em música para depois diversificar seu campo de atuação em multimídia em música, cinema, vídeo e televisão - foi um dos primeiros a explorar a fundo a tecnologia de vídeo como possibilidade expressiva, abrindo diversos caminhos nesta área e criando importantes zonas de reflexão em torno da imagem videográfica e seus potenciais.

Por muitos anos membro do grupo Fluxus, de George Maciunas, suas performances, instalações e ready-mades exploraram campos multidisciplinares por um viés provocador, desconstruindo os elementos tradicionais de áreas como a música e inovando na sua utilização crítica [ou não tão crítica] de tecnologias ainda incipientes, como o vídeo e a televisão.

Destaca-se entre seus trabalhos a aproximação feita entre vídeo e música, em particular a aproximação que faz entre o piano e o aparelho televisivo - ambos, em momentos históricos distintos, as peças de mobiliário mais caras encontradas em uma casa burguesa. Estes dois aparelhos, foram, assim, alvos de variadas intervenções do artista, que buscava produzir efeitos sonoros e visuais distintos a partir da preparação destes aparelhos, tal como exibiu em uma de suas primeiras grandes exposições: "Exposition of Music - Eletronic Television", realizada na residência do arquiteto Rolf Jährling em 1963.

Nesta exposição, Paik apresentou obras de interesse fundamental para o Projeto Marginália, uma delas denominada Random Access Music, na qual aparelhos de som (toca-discos de vinil, toca-fitas) tinham suas unidades leitoras destacadas e oferecidas ao manuseio dos espectadores, que poderiam utilizá-las para acessar partes do som gravado nos discos e fitas de maneira randômica e não-linear, produzindo eles mesmos suas músicas a partir da combinação de sons oferecidas.

Random Access Music - Nam June Paik

Um pouco a partir desta aproximação, muitos dos desenvolvimentos de Paik ocorreram no sentido de aproximar a simultaneidade na produção de sons por um instrumento musical à produção de imagens. Foi desta maneira que ele apresentou o Paik/Abe Synthetizer, que desenvolveu em conjunto com o técnico Shuya Abe. Segundo ele, o sintetizador de vídeo que eles criaram deveria ser mainpulado em tempo real, tal qual um piano, para produzir efeitos plásticos diversos a partir da imagem videográfica.

Deste experimento em diante, várias foram as experiências de Paik no sentido de produção de imagens manipuladas em tempo real, algumas vezes a partir de retroalimentação do sistema de vídeo, com sobreposição de canais simultâneos de vídeo e produção de efeitos de rastro a partir da câmera que grava a sua própria imagem. Nesta vertente de experimentos, destaca-se o programa de televisão ao vivo Good Morning, Mr. Orwell, realizado no início de 1984 a partir de transmissão de televisão ao vivo entre Nova York e o Paris. Em um dos quadros do programa, um casal dançava diante de um fundo azul e, por chroma keying, o fundo era substituído pelo feedback do sinal enviado a Paris que retornava a Nova York, criando o efeito de rastro a partir do atraso do sinal decorrente da distância entre as duas cidades. Isto além das inúmeras sobreposições imagéticas e sonoras de sinais provenientes de distintos pontos do globo, realizando uma obra realizada, efetivamente, a partir de distintos lugares, simultaneamente.

Good Morning, Mr. Orwell - Nam June Paik

Paik possuía uma abordagem freqüentemente ambígua a contraditória com relação à tecnologia, buscando constantes aproximações entre esta e elementos de cultura oriental, tais como o zen-budismo - a partir de associação com o músci John Cage. É interessante, contudo, os esforços do artista, em diversos momentos, em humanizar o artefato tecnológico, desconstruindo seus usos tradicionais em favor de experiências distintas e de problematizar os elementos estáveis de sua linguagem e materialidade.

É muitas vezes a partir destas intervenções que se torna possível a inserção, dentro destes artefatos, de elementos antes expulsos de sua constituição, possibilitando experiências particularizadas de seu funcionamento, tal como o que ele propicia com seu Random Access Music e Paik/Abe Synthetizer, destacando a música e o vídeo gravados de uma reprodução mecânica e maquínica para apropriá-lo corporalmente pela intervenção do artista ou do público.

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